quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A quebra do paradigma da incapacidade e o Princípio do Superior Interesse da Criança – O "Cavalo de Tróia" do Menorismo.


A quebra do paradigma da incapacidade e o

Princípio do Superior Interesse da Criança –

O "Cavalo de Tróia" do Menorismo.


João Batista Costa Saraiva

Juiz da Infância e Juventude, professor universitário

1. A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Identificar o adolescente como sujeito de suas ações; como sujeito de direitos, e, em conseqüência, titular de direitos e obrigações, nem sempre se dá de forma a ser perfeitamente compreendida por todos. Há mitos e preconceitos impedindo esta compreensão. Além disso, há um equivocado entendimento da ordem legal, resultando no que Emílio Garcia Mendez define como a crise de interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente .

A partir de Freud, Lacan e Winnicott, em uma incursão psicanalítica sobre o tema, Sonia Carneiro Leão oferece outras reflexões sobre a adolescência, destacando o imaginário adulto frente a adolescência, uma época onde tudo é permitido e nada seria cobrado, segundo este ideal adulto da adolescência.

A propósito disso, cumpre realçar, com especial relevo, que o ignorar a responsabilidade penal juvenil ao adolescente, produz a sensação equivocada de impunidade, aspecto que ainda mais contribui para o "mito da impunidade do menor". Produz-se um sentimento contraditório sobre a adolescência; uma fase quase idolatrada pelo mundo adulto, que ao mesmo tempo a inveja e a condena; consagrado na expressão tão comum do cotidiano adulto em face ao jovem: "ah se um tivesse a tua idade com a experiência que tenho hoje...".

Diz Sonia Leão:

"Sensação de plenitude o adolescente sente, realmente. O adulto o inveja, invariavelmente. Por causa dessa plenitude o adolescente vê o mundo com as cores mais intensas. O mundo adulto já ficou um tanto desbotado.O jovem acha que pode tudo. Há bem pouco tempo eram crianças submetidas aos padrões éticos de suas famílias, reproduzindo fielmente os desejos do meio em que viviam. Agora têm estilo próprio. Vestem-se de modo peculiar. Cantam músicas que lhe são destinadas especialmente, e já têm pontos de vista próprios.

"As crianças de 6 a 9 anos são muito reacionárias. Tudo o que elas pedem é que lhes seja dada bem pouca liberdade. Educadores severos para conterem seus impulsos descontrolados é o que elas reclamam. É esta a fase áurea da formação do superego, instância prepotente e dominadora que, se não for muito vigiada, vigiará o sujeito para o resto de sua vida, incapacitando-o freqüentemente a buscar novos prazeres. Na adolescência há como que a busca de uma trégua do superego. Isso não significa que o jovem não internalizou esta instância psíquica. Ela está lá, só que, agora, numa espécie de latência. Digamos que o adolescente percebe o seu cão de fila superegóico, farejando bem de perto seus impulsos sexuais. Mas ele agora sabe driblar o vilão. Então já pode ir ao encontro do grande amor, já pode ir buscar o seu desejo. Esta é a idade em que a libido está solta, dentro e fora do sujeito, nele e no outro, ao mesmo tempo".

O atendimento diferenciado, respeitada a condição especial que os adolescentes (e também as crianças) ostentam, é conceito universal, estampado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e em toda a normativa internacional que trata da matéria.

O conjunto desta normativa resulta na chamada Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança, contemplando, além da Convenção, As Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça de Menores, As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil. Este corpo de legislação internacional tem força de lei interna para os países signatários, entre os quais o Brasil.

Maria Auxiliadora Minahim, em obra contemporânea à edição do Estatuto da Criança e o Adolescente, discorre sobre a visão do direito penal e a imputabilidade em face à idade, fazendo uma análise histórica do tema, afirmando, no capítulo final de seu trabalho:

"Se as emoções variam de uma identificação positiva para uma identificação negativa com os adultos, em relação à criança e ao adolescente o fenômeno é ainda mais acentuado. Isso ocorre ainda mais pela indiscutível sedução que a infância exerce, ao menos nos primeiros anos, como promessas de uma vida que se instala só de pureza e bondade. No entanto, e como tudo na natureza, a uma qualidade opõe-se outra, o que deveria conduzir à procura do todo que, em sua essência, é diferente da soma das partes. A humanidade, todavia, insiste em fragmentar percepções do maturo, entendendo-o em razão de facetas isoladas. Assim, da pureza a perversidade, de alma abandonada à infância viciada, de carente a pivete, a criança flutua na consciência grupal com reflexos no Direito"

A compreensão da adolescência e sua relação com a Lei, haja vista este caráter diferenciado, deve vir norteada pela exata percepção do que consiste esta peculiar condição de pessoa em desenvolvimento e a correspondente responsabilidade penal juvenil que disso decorre, sem concessões; seja ao paternalismo ingênuo, que somente enxerga o adolescente infrator como vítima de um sistema excludente, em uma leitura apenas tutelar; seja ao retribucionismo hipócrita, que vê no adolescente infrator o algoz da sociedade, somente o conceituando como vitimizador, em uma leitura sob o prisma do Direito Penal Máximo.

2. A quebra do paradigma da incapacidade. O princípio do superior interesse da criança. O "Cavalo de Tróia" do Menorismo.

Na caminha trilhada entre a indiferença e a proteção integral de direitos, a criança transitou desde a desconsideração de sua condição diferenciada, ao rótulo de incapaz, até a compreensão (nem sempre percebida) de sua condição de pessoa em peculiar estágio de desenvolvimento, sujeito de direitos.

Tobias Barreto produziu, em 1886, o clássico "Menores e Loucos em Direito Criminal", lançando crítica ao tratamento penal idêntico ao do adulto reservado "aos menores" pelo Código Penal do Império. Àquele tempo a imputabilidade adulta era alcançada aos quatorze anos, mas era facultada ao Juiz a possibilidade de tratar como adultas crianças desde os sete anos, a partir de um critério biopsicológico – abandonado desde 1922 em nosso País, e que muitos pretendem vê-lo ressuscitado como moderno, na linha do neo-lombrosianismo cientificista tão em voga.

A ênfase de Tobias Barreto era no sentido de afirmar a incapacidade dos menores, estabelecendo uma relação com os "loucos de todo gênero", que, por incapazes, recebiam tratamento diverso.

O paradigma da incapacidade resultou incorporado ao chamado Direito Tutelar de Menores, concebido a partir do final do século XIX e que fundamentou a construção da Doutrina da Situação Irregular. Como incapazes, os menores, enquanto categoria jurídica, ocupam o lugar de mero "objeto" do processo.

Operando com o sempre invocado princípio do superior interesse do menor, diante da incapacidade destes, competia ao adulto, "imbuído do espírito do bem", determinar qual seria o melhor para a criança, sem expressas referências limitadores deste poder discricionário, sob o sempre invocado argumento de amor à infância.

O chamado Princípio do Superior Interesse da Criança, expresso no revogado Código de Menores de 1979, em seu artigo quinto, e mantido na Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, que o menciona em diversos dispositivos, tem produzido, em nome do amor, graves situações de injustiça. Dado o contexto original em que surgiu este princípio e a indeterminação quanto a seu conteúdo, muitos estimam que sua utilidade prática é nula ou mínima no contexto atual de reconhecimento de direitos específicos para as crianças e os adolescentes e, em conseqüência, chegam a manifestar que havia sido preferível não incluí-lo no texto da Convenção. De fato, é fácil encontrar no funcionamento concreto dos chamados sistemas tutelares de menores alusões pseudo-doutrinárias a um intangível interesse ou bem-estar do menor, que se invoca como justificação última de todo tipo de decisão.

A aplicação ilimitada deste recurso se sustenta exatamente sobre a lógica da incapacidade do menor, subtraindo-lhe a condição de sujeito, pessoa em peculiar condição de desenvolvimento, titular de direitos e de certas obrigações.

Como ensina com propriedade Miguel Cillero, em face da superação do paradigma da incapacidade, substituído pela "condição peculiar de pessoa em desenvolvimento", todo interesse superior passa a estar mediado por referir-se estritamente ao direito declarado , somente o que é considerado direito pode ser interesse superior" .

O’Donnell, citado por Cillero, em um clássico artigo entitulado "La Convención sobre los Derechos del Niño: estructura y contenido", já fazia referência a posições críticas que destacavam que tal princípio debilitava a força da Convenção enquanto afirmação da qualidade de sujeito de direitos da criança, uma vez que condicionava o gozo e exercício dos direitos consagrados a eventuais conflitos com este interesse superior.

A leitura deste princípio, ante a condição de sujeito de direitos conquistada por crianças e adolescentes, só pode ser feita à luz do conjunto das garantias constitucionais e processuais expressamente reconhecidas, sob pena de se ressuscitar a velha doutrina travestida de nova. Somente para exemplificar basta ver o disposto no parágrafo primeiro do art. 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente, onde é atribuída relevância total à palavra da criança e do adolescente na solução da lide, dando vigência ao disposto no art. 12 da Convenção de Direitos da Criança e do Adolescente. No mesmo sentido o dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente relativo ao consentimento do adolescente nos casos de adoção, reproduzido no texto do Código Civil.

Embora resulte evidente do contexto a necessidade de limitação de tal princípio aos direitos afirmados, por conta da manutenção de conceitos de incapacidade em detrimento ao de sujeito de direito, o chamado princípio do superior interesse da criança acaba sendo operado no atual sistema como um verdadeiro Cavalo de Tróia da doutrina tutelar, servindo para fundamentar decisões à margem dos direitos expressamente reconhecidos pela Convenção, adotados por adultos que sabem o que é o melhor para a criança, desprezando totalmente a vontade do principal interessado. Daí porque ainda se determina a internação de adolescentes em conflito com a Lei, em circunstâncias em que a um adulto não se imporia privação de liberdade, sob o pífio argumento de que não sendo pena, isso lhe será um bem, em nome do superior interesse, ignorando um conjunto de garantias instituídas.

3. O Garantismo e o Direito Penal Juvenil. A Lei de Execuções de Medidas Socioeducativas.

Dissertando sobre o tema, Luigi Ferraioli, destaca que o paradigma paternalista do superado direito menoril, fundado na Doutrina da Situação Irregular, resultava de sua natureza informal e discricionária, sempre consignado a um suposto poder "bom" que invariavelmente atuaria no "interesse superior do menor". Este presuposto resultou dramáticamente desmentido pela realidade, transformado-se, o sistema da doutrina da situação irregular na ausência absoluta de regras, posibilitando e legitimimando os piores abusos e arbitrariedades.

Contrapõem-se a isso a Doutrina da Proteção Intergal de Direitos da Criança, trazendo em seu bojo, na questão do adolescente em conflito com a Lei, todo o garantismo próprio do Direito Penal e do Constitucionalismo, estabelecendo um modelo de regras e garantias que se tem denominado Direito Penal Juvenil.

A Doutrina da Proteção Integral incorpora à questão do adolescente em conflito com a lei a proposta de Ferraioli, definida por Bobbio como um sistema de garantismo, com a construção das colunas mestras do Estado de direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo ( e portanto das crianças e dos adolescentes enquanto sujeitos de direito) frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, particularmente odioso no direito penal.

A inimputabilidade penal do adolescente, cláusula pétrea instituída no art. 228 da Constituição Federal, aspecto já destacado em outro estudo, significa fundamentalmente a insubmissão do adolescente por seus atos às penalizações previstas na legislação penal, o que não o isenta de responsabilização e sancionamento.

Afinal pena e sanção são conceitos que se tocam, embora não se confundam. Aliás, as sanções administrativas, advertências, suspensão, etc, são espécies de penalização de uma legislação especial, a administrativa. As sanções tributárias, multas, etc., são espécies de penalização de outro ramo de legislação especial, e assim por diante.

O Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu no Brasil um Direito Penal Juvenil. Assim o é definido em todos os países da América Latina onde houve a recepção em seus sistemas legislativos da doutrina da proteção integral, cujo modus operandi é idêntico ao adotado no Brasil.

Do ponto de vista normativo há necessidade que imediatamente seja regulamentado por lei o processo de execução das medidas socioeducativas, em face o que se fez lacônico o Estatuto da Criança e do Adolescente .

Desta lacuna legislativa tem resultado o avanço da discricionariedade e do arbítrio na execução das medidas socioeducativas.

Há que se ter em mente que o arbítrio deve ser combatido pelo garantismo. Que a existência da norma trás segurança e afirma o direito. A ausência de norma tende a produzir a discricionariedade, o subjetivismo, e daí para o autoritarismo é um passo. Como diz Emílio Garcia Mendez, citando Luigi Ferraioli: "a ausência de regras nunca é tal; a ausência de regras sempre é a regra do mais forte".

A discricionariedade e o subjetivismo são sempre um mal. Não existem discricionariedades e subjetivismos bons, cabendo aqui retornar a Bobbio, no prefácio que lança à obra de Ferraioli, onde este fundamenta o garantismo penal:

"A legalidade se opõe ao arbítrio (...). Por sua vez, a tese do direito penal mínimo abre sua frente principal contra as teorias do direito penal máximo (que culminam na defesa da pena de morte), mas não pode passar por alto das doutrinas abolicionistas ou substutivistas, segundo as quais a pena, pelo contrário, estaria destinada a desaparecer. Às vezes, os extremos se tocam: a liberdade regrada deve se opor tanto à antiliberal, quer dizer, a qualquer forma de abuso do direito de punir, quanto à carência de regras, ou seja, à liberdade selvagem. O princípio da legalidade é contrário ao arbítrio, mas também ao legalismo obtuso, mecânico, que não reconhece a exigência da eqüidade, a qual, com expressão tomada da lógica dos conceitos, Ferraioli chama de poder de "conotação", e a presença dos espaços nos quais habitualmente se exerce o poder do juiz."

A questão conceitual aqui exposta se faz fundamental.

Por fim, cumpre dizer que a "autonomia" do Direito da Criança, sustentada por alguns operadores do Direito da Infância para afastar a idéia de um Direito Penal Juvenil, acaba produzindo e contribuindo para reeditar, de forma travestida, o festival de eufemismos e de desrespeito ao direito de cidadania que marcou o Código de Menores, fazendo a operação do Estatuto da Criança e do Adolescente com a lógica da Doutrina da Situação Irregular, fazendo das medidas socioeducativas instrumentos de política "de bem estar de menores", de triste experiência nestes Brasis.

Esta autonomia resultaria basicamente do Princípio da Prioridade Absoluta e do sempre invocado Princípio do Superior Interesse da Criança. Ambos os argumentos não tem o condão de desfazer o sentido da afirmativa de o Estatuto da Criança e do Adolescente haver consagrado um sistema de responsabilidade penal juvenil, integrado em um sistema de justiça, em um sistema normativo, cuja validade e eficácia somente pode ser reconhecida a partir de seu assento constitucional. Em verdade o afirma.

O Princípio da Prioridade Absoluta afirmado no art. 227 da Constituição Federal , em última análise, como corolário do paradigma da proteção integral, ao lado de um conjunto princípios constitucionais assecuratórios do Direito da Criança, resulta no que Martha Toledo resume como princípios constitucionais especiais do sistema de responsabilização penal juvenil, listados por aquela: Princípio da Reserva Legal; Princípio da Culpabilidade; Princípio da inimputabilidade penal; Princípio da excepcionalidade na privação de liberdade; Princípio da brevidade na privação de liberdade; Princípio do Contraditório; Princípio da Ampla Defesa. É neste conjunto de Direitos e Garantias que se identifica a idéia de um Direito Penal Juvenil, em um universo de valores que desconstrói o paradigma da incapacidade para reconhecer o adolescente em sua condição de sujeito de direitos, com responsabilidade penal juvenil. O Princípio do Superior Interesse da Criança, já tratado neste trabalho, somente pode ser compreendido quando submetido àqueles. Isso não faz o Direito da Criança autônomo da Ordem Constitucional e Normativa, ao contrário, submete-o àquela, como dimensão única de sua eficácia e legitimação.

Assim, como já o disse em outra ocasião, há que se reafirmar que não se constrói cidadania sem responsabilidade e não pode haver responsabilização sem o devido processo e o rigor garantista. Isso se extrai da ordem constitucional, da normativa internacional, dos preceitos do direito penal. Repetindo, para afirmar o conceito: Direito Penal este, que será juvenil, porque especial, distinto, próprio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento do sujeito desta norma.

http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/doutrina/condi%C7%C3o+peculiar+de+pessoa+em+desenvolvimento+artigo+revista.htm

Nenhum comentário: