A política brasileira de adoção e seus muitos tons de cinza

A adoção é tema espinhoso.
Junta pais biológicos, na maioria das vezes em situação de miséria, crianças em situação de vulnerabilidade e  candidatos a pais afetivos cobertos das melhores intenções. E, como pano de fundo, um duplo preconceito, tanto contra os pais miseráveis como contra os candidatos à adoção.
É situação que exige enorme sensibilidade, porque não envolve bandidos ou interesses menores, mas famílias em situação vulnerável e famílias dispostas a acolher crianças não apenas no seu lar mas no seu universo afetivo.
Os problemas decorrem da implementação da Lei de Adoção.
Há enormes problemas burocráticos a ponto de, mesmo candidatos a pais que não impõem nenhuma pré-condição, esperarem por anos na fila de adoção. Essas dificuldades, mais a falta de transparência do Cadastro de Adoção, acabaram criando problemas estruturais e, com eles, uma zona cinzenta.
Nesse espaço cinza convivem pessoas de boa vontade – os chamados “facilitadores”, colocando casais que querem filhos com mães que querem doar -, autoridades bem intencionadas e esquemas clandestinos de comercialização de crianças para adoção.
Foi nesse terreno movediço, com tantos tons de cinza e, portanto, pouco adequado a atuações maniqueístas, que se procedeu à escandalização das adoções em Monte Santo, alimentada por dois interesses distintos: o ideológico e o comercial.
Sobre o comercial, já falamos. Vamos entender, agora, o jogo ideológico.

O jogo ideológico

A adoção é um problema eminentemente social e que tem como foco primordial a criança.
Hoje em dia, o sistema de adoção passa por um conjunto de instituições, do Ministério da Justiça à Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério Público e Poder Judiciário aos Conselhos Tutelares municipais.
O Conselho Tutelar é um belíssimo projeto, com enormes problemas de implementação. São  conselhos municipais, compostos por membros da comunidade, eleitos, e recebendo salários, incumbidos de trabalhar o problema da infância. 
A remuneração dos conselheiros acabou se tornando um mal.  Convivem nos Conselhos desde cidadãos dedicados até pessoas pessimamente qualificadas, que o utilizam como cabide de emprego.
E coexistem, igualmente, duas espécies de preconceitos ideológicos.
De um lado, os conselheiros que acham que pobreza é condição suficiente para tirar o chamado pátrio poder. Do outro lado, os que consideram que, em qualquer hipótese, a criança deve ficar com a família biológica, até nos casos em que a incapacidade de cuidar das crianças vai além dos problemas econômicos.
São dois agrupamentos, muitas vezes compostos por xiitas capazes de colocar sua postura ideológica acima dos interesses das próprias crianças.
Esse embate ocorreu no Congresso, por ocasião da votação da chamada Lei da Adoção - Lei 12.010, sancionada no dia 3 de agosto de 2009, reformulando a antiga Lei da Adoção de 1990. A relatora da nova lei foi a então deputada, atual Secretária de Direitos Humanos, Maria do Rosário.
O grupo liderado por Maria do Rosário entendia que, em qualquer hipótese, a criança deveria ficar com a família biológica. Na impossibilidade imediata, deveria ficar em abrigos até a família ser reestruturada, recuperada de dependência química, com garantia de não mais maltratar as crianças.
O sistema de adoção passou a conviver com a Lei de Adoção e com o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária
Alguns princípios ficaram consolidados.
O primeiro deles, o pressuposto de que a primeira solução é a própria família. Se a família não tiver condições, que a comunidade trate de provê-las.
Só que a adequação da família demanda tempo. E há casos em que a incompatibilidade é absoluta, como a dependência química dos pais, espancamento de crianças, ameaças à saúde, abuso sexual. Não é o fato de serem pobres ou classe média que torna pais mais ou menos virtuos.
Daí a necessidade de um período provisório, no qual as crianças sairiam da situação de risco sem perder o vínculo familiar, dando tempo para que as famílias se reabilitassem. E, caso não se reabilitassem, que as crianças fossem encaminhadas para adoção.
O Plano definiu algumas saídas, como o de deixar provisoriamente as crianças em casas de outras famílias, até mediante pagamento, se fosse o caso. Ou coloca-las em abrigos.
Os abrigos tornaram-se um tormento. Em muitos casos, as crianças permaneciam no abrigo até a maioridade.
A Lei da Adoção significou um avanço, ao propor o prazo máximo para as crianças ficarem abrigadas. Os movimentos pró-adoção propuseram um ano. O grupo de Maria do Rosário resistiu. Acabaram chegando a um acordo de dois anos, um avanço, mas que não resolveu as diferenças ideológicas, que acabaram se radicalizando quando Maria do Rosário assumiu a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Ela empreendeu uma ação destinada a mudar a estrutura dos Conselhos Tutelares.
Seus assessores garantem que a intenção foi retirar deles os vícios decorrentes da estratificação e da falta de capacitação dos conselheiros tutelares. E, realmente, essa é uma realidade disseminada pelos diversos conselhos.
Seus adversários sustentam que a intenção foi aparelhar os conselhos, impondo-lhes uma cultura radicalmente anti-adoção.
Foi nesse caldeirão explosivo, onde se misturaram embates ideológicos e objetivos comerciais da maior rede de televisão do país, que explodiu o caso das crianças de Monte Santo.
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