quarta-feira, 24 de julho de 2013

Adoção post mortem do adotado


23 de julho de 2013 16:35 - Atualizado em 23 de julho de 2013 16:35

Um tema que sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como pela sua complexidade, é o da adoção. Isto porque, em razão do afeto, que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditames da lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma definição jurídica. Interessante e inusitada decisão foi…

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Um tema que sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como pela sua complexidade, é o da adoção. Isto porque, em razão do afeto, que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditames da lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma definição jurídica. Interessante e inusitada decisão foi proferida em um processo que tramitou perante a Vara da Infância e Adolescente da comarca de Itajaí (SC).
Como se trata de processo acobertado pelo segredo de justiça, poucas informações foram obtidas, mas suficientes para que se possa ter a noção do acerto da decisão. Uma menina foi abandonada pelos pais logo após o nascimento, em precário estado de saúde, pois era portadora de síndrome de Down, lesão neurológica, mosaicismo, hipotonia, sucção débil, cardiopatia congênita e síndrome de West. Todo este quadro desanimador era indicativo de que a criança seria abandonada à sua triste sorte e figuraria na escala daqueles que não são aquinhoados com direitos iguais, mesmo não sendo responsáveis pela sua situação.
Mas há pessoas dotadas de uma sensibilidade estremada, que se posicionam na escala superior de outras e que tem o senso voltado para a prática do bem e vocação para a solidariedade. Assim é que uma pedagoga, solteira, candidatou-se à adoção e inicialmente pleiteou a guarda provisória, que lhe foi conferida. Quatro meses após, no entanto, ainda no curso do processo, a criança faleceu, mas não desencorajou a pretendente à adoção de levar adiante o pedido, que foi julgado procedente posteriormente.
A adoção realizada no Brasil é muito semelhante à praticada em Roma, no direito justinianeu. O pater famílias que pretendia a adoção e o adotado dirigiam-se diante da autoridade judicial e, conforme esclarece Alves, “os dois primeiros faziam declarações concorde no sentido da adoção, a ela aderindo o adotando com o simples silêncio”.[1] Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a natureza) e, para tanto, eram exigidos que o adotante fosse, no mínimo, 18 anos mais velho que o adotando, além da proibição para os incapazes de gerar, como aqueles que tinham sido castrados.
A legislação que trata da adoção no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente. A lei menorista, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural. A adoção, portanto, é uma medida excepcional. Com as modificações introduzidas pela Lei nº 12.010/2009, criou-se a adoção unilateral e a bilateral e o direito do adotado de conhecer sua identidade genética.
No caso em questão, trata-se de adoção unilateral, prevista em lei. Por outro lado, há o permissivo de adoção post mortem do interessado que falecer durante a tramitação do pedido, desde que comprovada a posse de estado de filho. Porém, com relação à adoção post mortem do adotado a mesma lei silencia a respeito. E até com certa razão, pois cessa o interesse do pedido em razão do falecimento daquele cuja adoção é pretendida, ainda mais sem qualquer reflexo patrimonial e direitos sucessórios.
Ora, não é preciso caminhar muitos passos para se chegar à conclusão de que a pedagoga, pela sua corajosa conduta inicial, pretendia levar adiante sua pretensão. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência toda especial. Tamanha é sua força que se encarrega de romper todas as regras previamente estabelecidas. É o casotípico da meninaMarcela, diagnosticada como anencéfala, que viveu duranteumano e oito meses, contrariando as previsões médicas. Estetempo de vida pode sercompatívelcom o de qualqueroutracriançasem a malformação. Afinal, emummomento se vive uma vida, na fala de Al Pacino, no filmePerfume de Mulher.
A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado. Ela brota no mundo jurídico com a finalidade de atender determinada situação, mas nada impede que, dando a ela uma extensão mais dilatada, alcance outra situação que seja semelhante.
O direito coloca à disposição do intérprete a analogia, que vem a ser a aplicação de uma determinada regra nos mesmos moldes de outra utilizada em caso semelhante, para fazer prevalecer a igualdade jurídica. Quer dizer, espécies semelhantes reguladas por normas semelhantes (analogia legis). “O manejo acertado da analogia adverte Maximiliano, exige, da parte de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado”.[2]
A justiça, desta forma, se apoia numa construção intelectual aliada a um sentimento que vem a ser a expressão dos princípios básicos que revelam as ações humanas altruístas, impulsionadas por sentimentos de afeto pelo próximo. Assim, nada mais justo do que conferir a adoção póstuma à pedagoga para que ela, conforme bem dimensionado pelo arguto julgador, possa “continuar sendo a mãe e ver o nome pelo qual chamava a filha gravado em sua lápide, preservando-se inclusive o direito de cultuar a filha que era sua, e não mais daqueles que renunciaram ao poder familiar”.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, advogado, mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp;
Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, advogado.


[1] Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.258.
[2] Maximiliano, Carlos.  Hermenêutica e a aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 172.
http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2013/07/23/adocao-post-mortem-do-adotado/

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