segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Atitude adotiva Nas mãos de quem?

Publicado em 28.10.2013, às 12h11


Uma criança sem família de verdade é alguém que vive uma infelicidade em estado absoluto
Uma criança sem família de verdade é alguém que vive uma infelicidade em estado absoluto
Foto: divulgação

Por Guilherme Lima Moura
“A justiça inflexível é frequentemente a maior das injustiças” (Terêncio)

O que é pior: deixar de ser feliz ou nunca tê-lo sido? Essa pergunta nos faz lembrar aquele pretensioso jovem que, certa vez, apresentou-se diante de um sábio com a intenção de desmoralizá-lo publicamente. Para tal, prendeu um pequeno pássaro entre as mãos escondidas atrás das costas e lançou-lhe a pergunta fatal: o passarinho que tenho entre os dedos está vivo ou morto? Tratava-se de uma cilada. Se o velho dissesse que o pássaro estava morto, o rapaz o apresentaria tal como se encontrava e ele lhe escaparia das mãos, alçando voo diante de todos. Se o ancião afirmasse que a ave estava viva, seu inquisidor a esmagaria para em seguida lhe apresentar o animal sem vida.

O pior entre deixar de ser feliz ou nunca tê-lo sido, tal qual a armadilha produzida pelo jovem impertinente do célebre conto, é questionamento sem resposta. Mas o que nos move aqui não é simplesmente a discussão de um quebra-cabeças lógico. Estamos falando da dramática situação em que se encontram inúmeras crianças desprovidas de família, por todo o Brasil. Em sua total falta de perspectiva consiste uma infelicidade que não tem par e que, por isso, não pode ter piora. Uma criança sem família de verdade é alguém que vive uma infelicidade em estado absoluto.

E como se já não bastassem as incontáveis crianças institucionalizadas e as, não menos numerosas, entregues ao infortúnio oculto de uma orfandade de (pseudo-)pais vivos, eis que nos deparamos com a terrível situação, de que se tornou recentemente símbolo a pequena Duda. A menina que, resgatada da família biológica que lhe infligia maus tratos quando tinha apenas dois meses de vida, e tendo vivido por quase um ano e meio numa instituição de acolhimento, vive sob estágio de convivência há dois anos e oito meses com aqueles que, pela via abençoada da adoção legal, escolheram ser sua família. A única família que ela conheceu. A família que ofereceu a Duda a possibilidade de se realizar como ser humano repleto de possibilidades. Que estabeleceu com ela uma relação de profundo afeto, a única condição de constituição efetiva de uma família. A menina que a justiça brasileira achou por bem agora devolver à família biológica, colocando a consanguinidade acima do afeto e do cuidado como elemento definidor da família de verdade.
A justiça brasileira colocou a consanguinidade acima do afeto e do cuidado como elemento definidor da família de verdade
A instituição jurídica que, representante de todos nós, deveria prover a garantia dos direitos da infância brasileira, recorreu simplesmente à etimologia para consagrar o ultrapassado significado de família: do latim, famulus, que significa “escravo doméstico”, decorre o conceito de conjunto das propriedades de um senhor, incluindo escravos e parentes. Em tal paradigma semântico, a criança é posse de alguém e não ela mesma um sujeito de direitos a quem devem ser providas as possibilidades de exercê-los. É o mesmo paradigma que consagrou por tanto tempo a indissolubilidade do casamento e o assassinato em legítima defesa da honra. Nestes casos a posse era a mulher.

A pequena Duda está sendo retirada da família adotiva para retornar agora à família biológica. Mas qual das duas deverá ser considerada a família de verdade? Tal verdade surge na posse incondicional de um ser por outro decorrente da gestação biológica, ou no amor que se estabelece entre aqueles que escolheram cuidar um do outro?

A questão, aparentemente polêmica, fica fácil de resolver se recorrermos tão somente ao que a vida nos mostra todos os dias: família sem amor é mero agregado de gente. Reconhecemos facilmente como familiares aqueles que nos dão a mão nos momentos difíceis e não os que saem conosco na foto do almoço de fim de ano. Então, dizermos “família que maltrata filho” é o mesmo que dizermos “entrar pra fora”. Não faz sentido. É uma contradição lógica. Portanto, família só é de verdade se for o espaço de acolhimento por excelência. Com ou sem vínculos sanguíneos.

Parafraseando Mário Quintana, uma criança de quem se retira a família de verdade “é um malogrado de quem rouba-se-lhe este mundo, o céu, as estrelas, o universo, tudo. É o roubo infinito”.

A célebre estória citada acima nos informa que naquele momento crucial, diante do jovem malicioso que o confrontava e ante a pequena multidão que se ajuntava cheia de ansiedade, o sábio encheu-se de compaixão: A resposta, meu jovem, está em suas mãos. E eu vos digo, meus caros, que é tempo de tantas e tantas crianças encolhidas entre nossos dedos. Que é tempo de escolhermos se somos malícia ou sabedoria.

*As colunas assinadas não refletem, necessariamente, a opinião do NE10

http://ne10.uol.com.br/coluna/atitude-adotiva/index.php

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