domingo, 8 de dezembro de 2013

MEU DOSSIÊ E UMA ADOÇÃO.


04.11.2013
Machadinho
Campo Grande/MS - Brasil, 56 anos

Esta matéria não tem o fim de desprestigiar a adoção. Tem o fim de ilustrar uma situação particular que a vida nos reservou (a mim e minha esposa). Deus deve ter encomendado esse sacrifício. Talvez em outra encarnação eu tenha ficado devendo esse sofrimento.

A adoção é um gesto nobre. Não é qualquer pessoa que tem essa coragem. Adotamos uma criancinha de um dia de vida. Enquanto ela era criancinha e foi crescendo a gente fez de tudo para dar-lhe o amor que esse segundo lar poderia lhe oferecer. A gente queria que ela tivesse um futuro brilhante.

Hoje ela tem 19 anos de idade. Todos hão de perguntar: - Como ela está? Como foram todos esses anos? Ela já está se formando? Tem um bom emprego? É feliz?

Pois é. Todas essas respostas caem no vazio.

Somos um casal de adotantes infeliz porque não conseguimos realizar nossos propósitos. Nada do que almejamos e lutamos foi alcançado. Achamos que oferecemos uma criação ideal, mas falhamos e não sabemos qual a razão. Ela estudou nos melhores colégios. Teve a melhor educação. Frequentou grupo de jovens religiosos. Foi levada aos melhores psicólogos. Tivemos com ela o cuidado de dar um tratamento igualitário com relação ao seu irmão, já que depois que ela nasceu veio um filho natural.

Entretanto, aos poucos ela procurava a degradação moral. Não queria responsabilidade dentro de casa. Não estudava. Foi reprovando e diminuindo a qualidade de seu ensino, porque não conseguia se firmar em escola particular. Passou a procurar amigos pouco recomendáveis. Incursionava na internet à procura pessoas de mau caráter, procurando grupos corrompidos ante as regras sociais.

Passou a utilizar de linguagem chula. Os palavrões eram a forma de comunicação mais comum. Passou a negligenciar sua higiene. Seu quarto passou ser um reboliço. Não queria organização e nem limpeza. Se alguém quisesse uma casa totalmente limpa tinha que entrar no seu quarto e fazê-lo ficar com bom ambiente.

Não queria ajudar em casa. Nem sequer levava uma louça. Qualquer responsabilidade exigida ela passava a dizer que iria completar 18 anos e ia sair daquela casa. De nossa parte sempre a tratamos bem e dando-lhe carinho que era necessário. Afinal, talvez fosse isso que faltasse. Entretanto, nada adiantou. Ela continuava arredia e procurando amigos ‘mal encarados’.

Até que encontrou o amor da sua vida. Uma pessoa de índole baixa que já tinha sido preso por tráfico de droga. Daí pra frente o declínio moral foi inevitável. Foi morar com tal sujeito, mas as poucas tentativas de trabalho fracassaram por conta de não querer ficar longe desse ‘encosto vivo’. Não demorou e passou a ‘curtir’ os mesmos vícios do companheiro. Droga, companhia de marginais, algazarra, irresponsabilidades com o local onde morava, incompatibilidade com vizinhos. Descuido com a aparência. Aversão à lavagem de roupa. Ou seja, qualquer tipo de higiene pessoal era algo a ser ignorado.

Em face de sua hipossuficiência para a própria subsistência acabou retornando para dentro de minha casa e agora com mais uma pessoa desregrada e sem capacidade laborativa. Não pudemos dizer não porque se isso ocorresse ela teria de ficar na rua, cujo abandono poderia desencadear mal maior. Acomodamos os dois num cômodo separado e passamos a fiscalizar, negociar horários para se chegar em casa, conselhos a cada crise, sempre procurando levá-la para outra saída. Nunca desistimos. Mas ela não correspondia. A cada gesto nosso de bondade era uma ‘cacetada’ contra as nossas aspirações.

Passou a ter chiliques e crises que pareciam obsessão. Ela tinha brigas intrigáveis com o tal companheiro. Ela chegava a bater nele. Um dia brigou com alguém do grupo e na promessa de se vingar nós tivemos que trancafia-la num quarto. Ela destruiu a porta de tanto açoitá-la com objeto pesado. Os vizinhos vieram nos dar uma ajuda e conseguimos acalmá-la.

Tentamos de tudo. Nada surtiu efeito. Esta semana soubemos que ela continua utilizando droga e até comercializando. Já instalei câmeras de monitoramento em minha residência. Tomo todas as cautelas possíveis para não ser pego de surpresa, fechando portas pelo interior da casa para que à noite os demais membros da família não corram nenhum risco. Não libero chave. Quando chegam vou pessoalmente coloca-los para dentro de casa.

Conselhos e conversas demoradas são executadas em momentos e que ela está frágil. O sujeito ao seu lado escuta tudo, mas é como se fosse um robô. Os dois escutam concordam, mas algumas horas depois estão fazendo tudo errado de novo. Ou seja, adotei uma pessoa e agora tenho que cuidar de duas e cada uma mais desgarrada da vida do que a outra. O rapaz tem até desvio mental tanto que o levou a ser absolvido no processo que respondia por tráfico.

Fiz ameaça com relação a ter droga dentro de minha casa. Afirmei que ia entregá-los para a polícia. Fiscalizei enquanto pude. Mas esta semana tive de expulsá-los porque descobri que estavam vendendo maconha. Descobri, também, que ela é testemunha de defesa de um preso, pois o oficial de justiça esteve em minha casa com o mandado judicial.

Enfim, todos os nossos esforços foram em vão. Criamos uma pessoa dentro de todos os critérios normais de educação, mas ela não absorveu nada disso na sua personalidade. Não sabemos onde ela está dormindo e às vezes aparece de madrugada pedindo alguma coisa. Aliás, quando precisa de algo aparece com a ‘carapuça’ de boazinha.
Não sabemos no que isso vai dar. Mas ainda temos esperanças de um dia ela encontrar com as durezas da vida e assim repensar sua conduta. Aceitar que precisa de tratamento, porque ela não admite que esteja precisando de ajuda.

Não creio que essa sina tenha vindo acompanhada de nosso gesto de adotar. Já vi muitas pessoas boas que também foram adotadas. Se perguntassem se adotaria outra vez. Eu diria que sim. Mas não vou fazer isso porque não tenho mais idade para cuidar de uma criança até o momento em que ela ficasse adulta. Estaria muito velho e se Deus mandasse outra assim eu não teria mais forças para ter esperanças.

Esse é o nosso martírio. Esse é o meu dossiê. Sou um pai na esperança de um dia ter recuperado uma pessoa de má índole.
http://www.recantodasletras.com.br/cartas/4598824

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