terça-feira, 25 de março de 2014

O FILHO QUE A VIDA ME TROUXE


23/03/2014
Fabiana Guimarães
Diário da Manhã
Contar que você não é o pai biológico é uma tarefa muito importante, porém os pais devem saber enxergar o momento certo de revelar este fato a uma criança
Era manhã de domingo quando Juliana, já com três anos, abria os olhos e acordava empolgada para visitar a avó na fazenda. Levantou-se, correu até o quarto dos pais, Maria e José, pedindo que eles se apressassem para passar o dia na fazenda da avó próxima a cidade. O irmão mais velho, Pedrinho, não estava tão entusiasmado quanto a irmã e pediu que esperassem alguns minutos a mais para que ele continuasse dormindo. Não adiantou. Todos acordaram e começaram a se organizar para aquela visita.
No caminho, Pedrinho ainda cochilava com os balanços do carro que seguia na estrada entre uma curva e outra e Juliana olhava atentamente pela janela, desejando que chegassem logo. O caminho pela estrada era de terra, com aquele cheiro de folhas verdes em uma manhã de setembro de 1993. Ao redor do carro, avistava-se o pasto com pontinhos brancos que, ao olhar bem, era possível ver um monte de vacas pastando. Juliana contemplava tudo atentamente enquanto ouvia o som das vozes dos pais conversando durante a viagem, apesar de não prestar atenção no que diziam.
A entrada da fazenda começava com um gramado enorme, que terminava embaixo de um pé de abacate bem amplo, onde se estendia uma sombra ótima para estacionar a camionete. Como sempre, sua avó esperava na porta de casa, com rosas nas mãos para entregar para os netos. A casa da avó era uma residência simples, porém muito acolhedora. Tinha galinhas por todo o local e animais de fazenda. Juliana adorava aquilo tudo e entrava correndo para comer os pães de queijo já preparados pela vovó.
Ao caminhar pela fazenda, Juliana estava com a mãe quando viu uma galinha cheia de pintinhos. Gritou para Maria:
– Olha mamãe, quantos filhinhos ela tem!
E correu para mais perto para observar o que aquela galinha fazia. Maria percebera que sua filha já classificava parentescos e teve a ideia de começar a contar aquele segredo à filha a partir dali.
HISTÓRIA DE JULIANA
Juliana era filha adotiva. Maria e José tiveram Pedro quatro anos antes de resolverem adotar a menina. Pedro era filho gerado e biológico deles, mas logo quando teve Pedro, Maria descobriu que não poderia mais ter filhos. Antes de se casar, sonhava em ter a casa cheia de crianças, mas não foi da vontade de Deus. Com um ano apenas de casada, ela interrompeu com o anticoncepcional e engravidou. Acreditou ser totalmente fértil, mas nos quatro anos seguintes não conseguiu gerar mais uma criança. Os médicos tentaram encontrar o motivo, mas foi em vão, até que esta vontade foi esquecida pelo casal.
Depois disso, Luiza, irmã de Maria, ligou dizendo que soube que ela queria mais filhos e não estava conseguindo engravidar. Luiza era médica e estava fazendo trabalhos comunitários em alguns hospitais nas zonas de baixa renda da cidade de Goiânia, quando recebeu em seu consultório uma mulher que estava grávida e não poderia cuidar da criança. A senhora disse que tinha muitos filhos e que mais um não seria possível ser criado por ela. Sabendo então do que a irmã desejava, Luiza ligou para Maria e a perguntou se era isso que Maria queria. Maria respondeu:
– Quero! Se for menina. Se for menina é para ser minha.
Alguns meses antes, Luiza sonhara que entregaria uma criança nos braços de Maria. Como uma história divina, foi aquilo que aconteceu. Nove meses depois, Luiza chegava à casa da irmã com Juliana nos braços e a entregara falando:
– Aqui está minha irmã, a sua filha!
Maria pegou Juliana no colo com apenas três dias de vida. A menina dormia calmamente quando abriu os olhos para sua mãe. Pedro pedia que a mãe abaixasse para mostrar sua irmã para ele, e todos a receberam já como parte da família. Maria sentia a emoção de um parto quando pegou a filha pela primeira vez no colo e, chorando, agradeceu a irmã pelo que ela tinha feito por ela. José estava muito inquieto com a chegada da filha e sentia um certo receio quando a pegava no colo. Porém, naquela primeira noite, quando Juliana chorou, ele despertou e foi pegar a menina no colo para que ela dormisse.
INTRODUZINDO A IDEIA NA CRIANÇA ADOTADA
Voltando àquele dia da fazenda em que iniciamos esta história, Maria começou a ver naquele momento que a filha já entendia graus de parentesco e começou a contar naquela manhã que sua filha pertencia a ela de forma diferente. Não pensou duas vezes. Foi até uma galinha que estava botando ovos, pegou um ovo e colocou em outra galinha:
– Filha, esta galinha está muito doente e não vai poder cuidar desse pintinho quando ele nascer. Então a mamãe vai levar esse ovo para outra galinha poder cuidar quando o pintinho nascer, porque a outra galinha não está doente.
– Mas ela vai morrer, mamãe?
– Talvez ela morra. Então a outra galinha agora vai ser a “mamãe de coração” desse pintinho e vai amá-lo como se tivesse ela mesma botado esse ovo.
E assim foi como Maria começou a introduzir a ideia de adoção em Juliana, que começava a crescer já achando tudo aquilo muito normal e se sentindo amada como sempre foi. Quando ela foi crescendo, Maria disse a sua filha que ela era filha de coração de seus pais, e Juliana achou aquilo tudo muito normal. Ela entendia que Pedro era filho biológico e ela filha de coração de seus pais, mas se sentia tão amada quanto o irmão e não via diferença ou distinção entre eles.
Contar ao filho adotivo que ele é adotado é uma tarefa muito importante para os pais, que devem saber enxergar o momento certo de se contar a uma criança que ela não foi gerada da forma comum. Quanto antes contar, melhor, mas deve ser levada em conta a capacidade da criança em entender o que está sendo dito.
Maria começa a introduzir de forma natural à filha contando a historinha da galinha. Assim, Juliana consegue assimilar o raciocínio de acordo com a sua idade e de acordo com a sua imaginação, já que a mãe explica brincando com ela e mostrando exemplos. Conversar com uma criança e fazê-la entender o que se está querendo dizer e explicar não é uma tarefa tão simples. É preciso ter paciência e ao mesmo tempo calma e tornar aquilo tudo como uma situação normal, porque o complicado na aceitação é aquilo ser visto como diferente, como um drama familiar, como um processo ruim.
FORMAS DE CONTAR
É importante que se explique brincando, usando metáforas, assim ela cresce achando aquilo tudo perfeitamente normal e não se sentindo menosprezada pelos pais. Toda criança tem uma etapa que começa a curiosidade de saber de onde vem e como veio. Essa curiosidade começa na formação da personalidade, quando ela começa a raciocinar suas ações e espelhar suas atitudes. Então querem ter nelas a figura dos pais; começam a se comparar e a entender que fazem parte daquele mundo. Neste momento, é quando estas perguntas surgem e quando a criança começa a questionar sobre isso, é o momento certo para falar sobre o assunto, pois é quando ela está preparada para entender.
Falar de forma clara, segura e confiante faz com que a criança entenda melhor o processo de adoção, o por que de ter sido adotada e percebe que não há distinção perante outras crianças. É importante que ela saiba que a história dela é diferente no nascimento, mas não é diferente em relação ao amor que os pais lhe oferecem. A criança tem o direito de saber e conhecer sua história de vida e é de extrema importância que isto seja dito pelos pais. O fato do bebê ter nascido de outra mãe não significa que por isso a criança será infeliz ou mais infeliz que outra; ela só será infeliz se sua primeira história, sua gestação não ser integrada a sua história atual.
O fato do não contar gera um conflito caso a criança saiba daquela história de outra forma, por que se ela sempre foi desejada e sempre foi amada, por que seus pais não deixaram aquilo claro desde o princípio? Talvez a pessoa depois de crescida veja aquela omissão dos pais como vergonha que eles têm sobre isso, despertando um sentimento de frustração, rejeição, vergonha e não aceitação dela mesma e de sua verdadeira história.
O contar, mostrar a realidade é de extrema importância em casos de adoção de bebês. Deve ser mostrado desde o princípio a sua origem. Nos casos de crianças adotadas já com idades acima de cinco ou seis anos, ela já sabe como tudo aconteceu, porém falar daquele fato deve ser sempre de forma natural e brincando, tornando tudo muito normal, mostrando orgulho que os pais tem em tê-la por perto e que foi sempre muito desejada e amada, em qualquer processo.
A NÃO ACEITAÇÃO
Júlio e Soraia sempre quiseram ter três filhos, sendo o terceiro adotado. Estavam na fila de espera por dois anos e o desejado filho nunca chegava. Naquele ano, em comemoração ao aniversário de Soraia, Deus preparou um presente muito inesperado. Uma ligação do pediatra dos filhos dela:
– Soraia, sua filha nasceu!
Marina chegara ao mundo no mesmo dia que a mãe adotiva. Foi recebida em dia de festa com muito amor e carinho por todos os seus familiares. Sempre muito desejada, foi uma grande emoção receber um novo membro naquele dia. Seus irmãos estavam animados com a chegada da nova integrante da família.
Com o passar dos anos, Soraia foi orientada a nunca antecipar a curiosidade de Marina em relação ao caso e que com o tempo a menina mesma iria querer saber como veio ao mundo. Quando ela aprendeu a falar, Soraia começou a contar historinhas infantis que explicassem aquele processo, porém Marina se recusava em ouvir:
– Dessa história eu não quero saber, podia me contar outra mamãe?
E sempre que envolviam histórias de gestação, barriga crescendo, parto, Marina se recusava a ouvir. Soraia sempre afirmava o amor que sentia pela filha, mas que ela não havia saído de dentro da barriga dela. Descontente, a filha afirmava:
– Se não sou da sua barriga, sou da barriga do meu pai!
A PSICOLOGIA POR TRÁS DO MEDO DE CONTAR
Com receio que a filha se sentisse rejeitada, aquele assunto se tornou isolado da família. Todos pararam de querer introduzir isso na menina que cresceu como uma filha legítima, tendo responsabilidades iguais aos dos irmãos e sem diferenças entre eles.
A psicologia do desenvolvimento explica que desde a vida intrauterina de uma criança já existem laços emocionais entre o bebê e a mãe. Quando o filho é desejado, a mãe tem o costume de conversar com ele dentro da barriga, havendo interação mãe e filho. A pulsação da mãe é ouvida dentro do útero, a corrente sanguínea é a mesma entre os dois, o que permite que o bebê sinta tudo que a mãe está sentindo.
Mães muito nervosas geram filhos muito nervosos, mães muitos ansiosas geram filhos muito ansiosos, e isso é um processo explicado desde os primeiros dias de vida de uma criança. Nos casos de rejeição, entende-se que a criança se sente indesejada neste período, pois a mãe não interage com o filho enquanto grávida. Não existe interação nenhuma entre ela e o bebê, portanto a criança pode criar reações de abandono.
Quando a criança nasce, a troca de olhares entre ela e a mãe também é uma forma de interação, e se essa troca não existe, pode interferir também nas emoções. Aquela criança pode se sentir só e este sentimento se torna interno em seu inconsciente.
COMO CONTAR QUANDO A CRIANÇA NÃO ACEITA
No caso de Marina, Soraia fez como Maria: usou de historinhas que a filha conseguia entender para explicar a sua realidade. Usou da ingenuidade da criança para contar como foi a sua vida e a sua gestação. Acontece que o sentimento de rejeição de Marina poderia já estar dentro dela desde a sua gestação, quando ainda estava no útero de sua mãe que não a desejava.
Neste caso, os pais devem procurar um psicólogo que consiga trabalhar com a criança sobre esse processo de aceitação de sua realidade. Apesar de ter sido nos primeiros dias de vida rejeitada, ela pode superar aquela rejeição com o amor de seus pais adotivos, desde que eles demostrem interesse em mostrar isso à ela. Uma criança que não aceita a própria realidade cresce com alguns sentimentos internos e emoções que ela pode não conseguir controlar, trazendo problemas futuros durante sua vida, que desencadeiam psicopatologias pessoais.
Não quer dizer que toda criança adotada pode passar por essa situação, mas se isso acontecer os pais não devem se culpar ou até mesmo se preocuparem achando que deram mais ou menos amor ao seu filho de coração. O que deve ser feito é trabalhar em terapia com aquela criança, de maneira natural, deixando que ela resolva esses conflitos internos sozinha, com a ajuda do psicólogo.
O filho adotivo merece saber sua história. Seus pais devem tratar aquilo de forma natural. A forma natural não é falar sobre o assunto a todo o momento, expor a todos aquela história ou conversar sobre aquilo todos os dias. Tornar natural é mostrar a realidade de forma que, desde sempre, a criança enxergue que é adotada, sabendo de sua história e de como ela foi desejada, não existindo barreiras entre os pais e os filhos em conversar sobre aquele passado que, acima de tudo, construiu os laços existentes entre eles naquele presente.
http://www.dm.com.br/texto/170722

Nenhum comentário: