segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Abrigos públicos para crianças são insalubres em Porto Alegre


Das 47 casas de acolhimento mantidas com verbas públicas em Porto Alegre, apenas uma não apresenta risco à saúde dos abrigados, segundo relatórios do MP

Atualizada em 01/09/2014 | 20h5501/09/2014 | 04h54
Abrigos públicos para crianças são insalubres em Porto Alegre Ministério Público/Divulgação
Colchão e cama estão em situação precária em um dos abrigos Foto: Ministério Público / Divulgação
Aos dois anos de idade, Maria* já venceu a morte. Filha de uma viciada em crack, foi parida na rua e deixada ao relento, para definhar. Encontrada com suspiros de vida, foi levada a um dos 47 abrigos públicos de Porto Alegre, que acolhem mais 806 crianças e adolescentes órfãos ou abandonados, muitos deles vítimas de maus-tratos.

Agora, mesmo sob guarda do Estado, Maria vive em um ambiente perigoso. Relatórios das vistorias mais recentes realizadas pelo Ministério Público Estadual (MP) em 47 dessas casas de acolhimento, entre o final de junho e o início de julho, mostram que só uma delas não colocava a saúde dos acolhidos em risco. Entre os problemas encontrados pelo MP estavam: escapamento de gás nos fogões, presença de ratos, fiação exposta e esgoto a céu aberto.
— Os abrigos estão em péssimas condições de segurança e habitabilidade. É uma omissão e um descaso — afirma a promotora Cinara Vianna Dutra Braga, responsável pela fiscalização dos abrigos na Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude da Capital.

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Das 47 casas inspecionadas, 35 são mantidas pelo governo do Estado, por meio da Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE), e 12 pela prefeitura de Porto Alegre, por meio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).


As irregularidades não são ocasionais: 97 problemas apontados nas vistorias de julho já haviam sido relatados nas visitas de abril — a promotoria inspeciona os abrigos a cada quatro meses. Em alguns casos, o Estado chegou a informar em ofícios ao MP que as irregularidades haviam sido resolvidas. Um exemplo foi a falta de medicamentos de uso contínuo no abrigo Cônego Paulo de Nadal, mantido pela FPE e destinado a crianças com deficiência. A mantenedora informou ter resolvido o problema, mas ele continuava em julho.

O mesmo aconteceu com reparos nas goteiras e no teto do Abrigo Residencial 32, que está caindo. Relatados ao MP como sanados, os problemas apontados em abril continuavam meses depois. Na mesma casa, o MP também apontou, há quatro meses, que a alimentação estava armazenada de forma inadequada, em local úmido e junto aos produtos de limpeza. Embora o Estado tenha comunicado ao órgão que reparou a irregularidade, nada havia mudado na segunda vistoria do ano.
Os responsáveis, no Estado e na prefeitura, dizem estar agindo, mas argumentam ter dificuldades devido à alta demanda — por sinal, 23% das casas têm mais de 20 crianças ou adolescentes, máximo permitido para esse tipo de abrigo conforme o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Em duas casas, o MP chegou a encontrar adolescentes dormindo no chão, por falta de camas.
— Várias situações foram resolvidas e o cenário já é outro. Não estamos de braços cruzados ou acomodados. Temos de obedecer e aguardar os trâmites da legislação. Trabalhamos com um cronograma de reparos, mas muitas vezes esbarramos na morosidade — diz a presidente da Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE), Luziane Galarraga.
— Esse cenário não é um descaso. Estamos trabalhando desde abril em cima de cada item apontado pelo MP e muitos já foram solucionados, com prioridade para os emergenciais. Três gerentes das casas foram substituídos, e constituímos um comitê de monitoramento para fiscalizar a qualidade do serviço das empresas terceirizadas — diz o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Marcelo Machado Soares.
Problemas oferecem riscos à saúde
Após ter acesso aos relatórios onde o MP aponta riscos à saúde dos abrigados, Zero Hora consultou o pediatra Ércio Amaro de Oliveira Filho, diretor da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers). De acordo com o especialista, ao menos 21 irregularidades citadas oferecem risco à saúde dos acolhidos. A situação é tão precária que em 29 casas, 60% dos abrigos públicos, são encontrados mais de três perigos diferentes aos acolhidos.
Em duas casas, Sabiá 1 e Sabiá 4, mantidas pela Fasc, as crianças e os adolescentes têm de conviver com oito itens inseguros, mostra o relatório. Na Sabiá 4, o bueiro está entupido, o esgoto transborda fezes e há presença de ratos na casa, onde a higiene é muito precária. Além disso, a pia do banheiro dá choque, há fiação exposta, mofo, colchões velhos e crianças com piolhos, aponta o documento.
— O contato com esgoto deixa a criança sujeita a uma série de bactérias que podem transmitir doenças. Essa condição precária de higiene também atrai ratos, vetores da leptospirose, doença que pode levar à morte — avalia o pediatra Oliveira Filho.
Em um local úmido e com muita vegetação, o Núcleo de Abrigos Residenciais (Nar) Ipanema, mantido pela FPE, possui sete casas de acolhimento. A maioria está repleta de mofo, exalando um cheiro tão forte que provoca dores de cabeça. Dos 47 abrigos públicos, 37 possuem mofo — em alguns casos, ao lado da cama das crianças —, o que segundo Oliveira Filho pode provocar crises respiratórias. Em uma das casas do Nar Ipanema, a adolescente Ana*, 17 anos, relata a condição precária de seu colchão _ um pedaço fino de espuma velho e sujo _ e reclama de dores nas costas. O incômodo à noite é tanto que ela prefere passar frio e colocar o cobertor embaixo do colchão, para diminuir a distância entre a coluna e a madeira.
— Assim dói menos — explicou a adolescente.
Colchões como os de Ana foram encontrados em 24 casas — a metade dos abrigos. Conforme Oliveira Filho, dormir em colchões e travesseiros que não oferecem sustentação ideal da coluna e do pescoço podem causar lesões musculares e nas articulações.
O terceiro risco à saúde mais recorrente nos abrigos públicos é a presença de fiação exposta e de tomadas sem proteção, que podem causar choques nos acolhidos. A irregularidade foi encontrada em 20 casas, 42% do total. Outro problema relatado nas vistorias do MP foi a presença de alimentos vencidos, armazenados em local inadequado ou em falta em nove casas, 20% dos abrigos.
Os apontamentos da fiscalização ainda fazem menção ao sucateamento das casas, já que 41 delas (87%) têm mobiliário precário e 27 (57%) eletrodomésticos danificados. Também diz que 39 abrigos (83%) foram encontrados sujos e desorganizados. Outro problema relatado durante as inspeções foi a carência de móveis, materiais e roupas em 42 casas, 89% do total.

CONTRAPONTOS
O que diz a presidente da Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE), Luziane Galarraga
"A rotina dessas casas, com muitas crianças, é muito dinâmica, então um fio que não estava solto ontem pode soltar hoje, e por isso elas precisam de manutenção constante. O caso do escapamento de gás no fogão foi encontrado e sanado no mesmo dia da vistoria do Ministério Público, e todos os itens de segurança relatados pela promotoria, como a fiação exposta, foram prontamente solucionados. Também adquirimos colchões novos, que devem ser entregues até setembro. Várias situações foram resolvidas e o cenário já é outro. Não estamos de braços cruzados ou acomodados. Sempre buscamos reformar e melhorar. Tudo que foi apontado, não só pelo MP, mas pelos nossos diretores e por mim, que faço visitas em abrigos, é reparado, mas temos de obedecer e aguardar os trâmites da legislação. Nosso planejamento estratégico visa suprir o que está de errado, e por isso trabalhamos com um cronograma de reparos, mas muitas vezes esbarramos na morosidade, como em um caso em que tivemos de notificar uma empresa que não entregou uma obra no prazo. Quanto à sujeira, notificamos as empresas terceirizadas de limpeza. Destacamos que o atual governo, nestes três anos e meio de gestão, aumentou o orçamento da FPE em R$ 132 milhões em relação à gestão anterior, destinando R$ 343 milhões à fundação, sendo R$ 98 milhões em 2014. Nossa missão é que as casas tenham a melhor estrutura possível, incluindo a parte técnica e funcional".
O que diz o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Marcelo Machado Soares
"Esse cenário não é um descaso. Estamos trabalhando desde abril em cima de cada item apontado pelo MP, para que sejam modificados, e muitos já foram solucionados, com prioridade para os emergenciais. As casas Sabiá 4 (de onde as crianças foram retiradas esta semana e encaminhadas temporariamente ao Sabiá 6) e Sabiá 9 mudarão de endereço até o início de setembro. Três gerentes das casas foram substituídos, e constituímos um comitê de monitoramento permanente para fiscalizar a qualidade do serviço prestado pelas empresas terceirizadas, como manutenção e serviços gerais. Nos últimos anos, a demanda do Judiciário por acolhimento institucional de crianças e adolescentes aumentou muito. Precisaríamos atender uma criança por dia, o que corresponde a abrir mensalmente uma casa em Porto Alegre, mas existe um esgotamento orçamentário. Nossa rede de acolhimento não se restringe às 12 casas próprias, temos também uma rede de casas-lar conveniadas, que contam com o acompanhamento técnico e supervisão de nossos profissionais. Este ano, investimos R$ 28 milhões no acolhimento de crianças e adolescentes. A partir deste mês, vamos passar a contar com um recurso federal, de R$ 165 mil mensais, uma conquista que vai contribuir para a melhoria das casas. Estamos também em processo de compra, com mais de R$ 500 mil, de móveis e eletrodomésticos, e vamos contratar cerca de 70 profissionais no próximo ano".

* Os nomes foram trocados para proteger as identidades das crianças e dos adolescentes citados.
 
 
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/09/abrigos-publicos-para-criancas-sao-insalubres-em-porto-alegre-4588188.html 

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