segunda-feira, 2 de maio de 2016

PROIBIÇÃO DAS FAMÍLIAS MULTIPARENTAIS SÓ PREJUDICA OS FILHOS (Reprodução)

1 de maio de 2016
Por Maria Berenice Dias
Processo Familiar
Um é pouco, dois é bom e três não é demais. Este é o ditado que, hoje em dia, serve quando se fala em família e em filiação.
Durante muito tempo a única família era a resultante do casamento entre um homem e uma mulher. Filho era somente quem havia nascido no âmbito desta família. Era assim chamado de filho legítimo.
Os demais não podiam ser reconhecidos e nem tinham direito algum. Quem era registrado somente no nome da mãe, era pejorativamente chamado de “filho da mãe”, expressão que carregava forte colorido discriminatório contra a mulher que teve um filho sem ter um marido.
Mas nada disso mais subsiste em um mundo plural, em que o amor tornou-se líquido e o afeto passou a ser o elemento identificador das relações familiares e parentais. Tanto uma como a outra são se constituem pelos elos de convivência e não estão sujeitas a modelos pré-moldados ou condicionadas a qualquer vinculação genética.
Até pouco tempo atrás, a única forma de reprodução era a resultante de um contato sexual entre um homem e uma mulher. No entanto, a evolução da engenharia genética ensejou verdadeira revolução em matéria de filiação. Para a concepção de um filho já não é necessário um relacionamento sexual entre duas pessoas de sexo diferente. Levada a efeito em laboratório, multiplica-se o número de pessoas envolvidas, podendo todas elas estabelecer um vínculo de filiação com o filho assim concebido.
Basta figurar a hipótese de um casal infértil. Eles podem ter um filho mediante a doação do óvulo, que é fecundado em laboratório por esperma também doado. Após a fertilização, o embrião é implantado no útero de outra mulher que leva a gestação a termo. É a popularmente chamada de barriga de aluguel, apesar da injustificada proibição de esta ser uma atividade remunerada.
Quem serão os pais? As pessoas que orquestraram a concepção do filho. Mas quantos participaram do processo reprodutivo? Será que todos não poderiam ser também pais ou mães? Será que alguém precisa escolher entre dois ou mais pais? As funções parentais não podem ser sobrepostas?
Mas há outros exemplos.
Quando o pai ou a mãe constituem novos vínculos afetivos, os novos parceiros, muitas vezes, assumem a posição de pai ou de mãe. A única possibilidade legal que existe é a chamada adoção unilateral (ECA 41 § 1º). O cônjuge ou companheiro do genitor pode adotar o filho dele, o que enseja a extinção do vínculo de filiação com o pai biológico. Pouco importa se o filho convive com o pai biológico ou se há um elo de afetividade entre ambos. Às claras que a situação pode gerar crise de lealdade do filho: ama o pai biológico e o padrasto. Será que precisaria optar somente por um deles? A lei nada dispõe. O pai registral necessariamente é citado para a ação, mas não precisa concordar com a adoção para ela ser concedida. Atentando ao princípio do melhor interesse, costumam os juízes determinar a realização de estudo psicossocial, mas sempre acabam acolhendo ou rejeitando a demanda. Deferem ou não a adoção. Ou seja, é o juiz quem escolhe será é o pai.
Tudo isso para que o vínculo de filiação imite a realidade natural: todo mundo só pode ter um pai e uma mãe.
Para atenuar, ao menos em parte, o desconforto de quem integrava uma família, mas tinha um nome diferente de seus membros, é que foi admitida a inclusão do sobrenome do padrasto no registro de nascimento (LRP 57 § 8.º). Como a inclusão é somente do sobrenome – sem qualquer referência ao nome – a alteração não gera qualquer vínculo entre padrasto e enteado. O pai continua sendo aquele que consta no registro.
A possibilidade de se ter mais de um pai ou mais de uma mãe sempre esbarrou em questão de outra ordem, geradora de enorme repulsa. Alguém receber um número maior de heranças era vista como verdadeira afronta de ordem moral. Isto é, uma alegação de ordem meramente econômica inibia o reconhecimento da existência de mais de um vínculo paterno-filial. Tanto era assim que, nas ação investigatória de paternidade, a jurisprudência limitava-se a declarar a ascendência genética, sem quaisquer efeitos registrais ou sucessórios.
Em face da brecha legal que admitiu parentesco de outra origem (CC 1.59), passou a ser reconhecida a filiação sociofetiva, inclusive de forma prevalente à filiação consanguínea. Como a filiação pode ser provada quando existem veementes presunções resultantes de fatos já certos (C 1.605 II), a chamada posse de estado de filho gera o estado de filiação. É filho quem detém nomem, fama e tractatus, ou seja, se reconhece como filho, assim é tratado e conhecido pela família e pela sociedade.
Reconhecida a parentalidade socioafetiva, imperioso admitir a possibilidade de coexistência da filiação biológica e da filiação construída pelo afeto. Não há modo melhor de contemplar a realidade da vida do que abrir caminho para a multiparentalidade. Afinal, é impossível negar que alguém possa ter mais de dois pais. E todos eles devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Neste sentido enunciado do IBDFAM: A multiparentalidade gera efeitos jurídicos.
A falta de expressa permissão legal prevendo a possibilidade de inclusão do nome de mais pais no registro de nascimento de uma pessoa, não há qualquer proibição. A falta de lei não pode ser óbice para que se assegure proteção integral a quem tem garantido constitucionalmente o direito à convivência familiar. Esta e a função do juiz, que não pode se omitir de julgar, ainda que não exista lei (LINDB 4º e CPC 140). Não há como falar em ativismo judicial.
Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta flagrar o estabelecimento do vínculo de filiação com mais de um pai ou mais de uma mãe. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, com a consequente averbação no registro civil, para todos os fins jurídicos, familiares e sucessórios.
A declaração da multiparentalidade não depende da concordância de todos os que exercem as funções parentais. A declaração judicial de não existir a filiação biológica não exclui a filiação socioafetiva. Nestas hipóteses, a inclusão no registro do pai biológico não impõe a exclusão do pai socioafetivo. E não há como negar a legitimidade do agente ministerial para buscar a declaração de multiparentalidade.
É direito de todos – principalmente de crianças e adolescentes – ter retratado em seu assento de nascimento o espelho de sua família, quem faz parte da sua história de vida. Trata-se de elemento essencial para a formação e desenvolvimento da identidade pessoal, familiar e social. A concretização desse direito – de ordem fundamental e personalíssima – somente é possível com o reconhecimento judicial da família multiparental, mediante a fiel reprodução desta realidade no registro de nascimento.
Esta é uma realidade que a Justiça começou a admitir. Decisões Brasil afora vêm autorizando a inserção do nome de mais de um pai ou de mais de uma mãe no registro de nascimento do filho, sem a exclusão do nome dos pais registrais.
As hipóteses mais recorrentes são quando, depois da morte de um dos genitores, se consolida vínculo de filiação socioafetiva com quem passou a exercer as funções parentais.
Diante do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, a garantia de acesso ao casamento e o uso das técnicas de reprodução assistida, impôs uma nova realidade. Como os pares homossexuais são estéreis, para realizarem o sonho de ter filhos, é indispensável a participação de mais uma pessoa.
Foi do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a pioneira decisão que admitiu o registro de uma criança em nome das duas mães e do pai (TJRS, AC 70062692876, 8ª Câm. Cível, Rel. José Pedro de Oliveira Eckert, j. 12/02/2015), reconhecendo a existência de um projeto multiparental. O filho foi concebido por decisão de três pessoas unidas por laços de afeto e amizade. Todas queriam ser pais e decidiram constituir uma família. Não se trata de uma família poliafetiva, por existir dois núcleos familiares. A família formada pelas duas mães e a família paterna.
Não impor deveres e não cobrar o cumprimento de obrigações a todos que exercem as funções parentais é fomentar a irresponsabilidade em nome de um bem que nem se sabe bem qual seria.
Ninguém duvida que famílias multiparentais sempre existiram e continuarão a existir. A diferença é que até recentemente eram condenadas à invisibilidade. A exclusão de direitos é resultado de uma perversa tentativa, de não ver o que foge do modelo do espelho. E esta falta de visão só vem em prejuízo dos filhos, que amam os seus pais, todos eles.
Maria Berenice Dias é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Revista Consultor Jurídico, 1 de maio de 2016, 8h00


Original disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mai-01/processo-familiar-proibicao-multiparentalidade-prejudica-filhos

Reproduzido por: Lucas H.

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