segunda-feira, 10 de abril de 2017

Justiça ordena que criança retirada de família pobre de São Francisco de Paula retorne ao lar (Reprodução)

05/04/2017

Uma mãe de 18 anos, jovem e inexperiente, um pai de 24 anos, desempregado. Essa combinação de fatores, tão comuns em famílias que se formam diariamente em todos os cantos do país, é muito rasa para afirmar que o futuro de um filho será construído sem amor e dignidade. Mas não foi esse o entendimento de autoridades. Numa decisão ainda não totalmente esclarecida, assistentes sociais e conselheiros tutelares consideraram que o casal de São Francisco de Paula seria incapaz de cuidar de um recém-nascido, identificado nesta reportagem como Pedro (nome fictício). Havia a suspeita de que o casal usasse drogas. Por esse motivo, optaram por encaminhar o bebê para um abrigo.

Mais: além de crescer longe do calor do colo materno, os pais não puderam ver o menino durante meses. Neste período, em tempo recorde para os padrões de uma rede de proteção à criança, Pedro deixou o abrigo sete dias depois e foi encaminhado para uma Família Acolhedora, projeto que sequer existe na Serra Gaúcha. De lá, seguiu para outra família, que se dispôs a brigar pela guarda dele, sendo que o pequeno jamais esteve disponível para adoção. O tempo mostrou que a primeira avaliação sobre o casal estava equivocada: o parecer da Justiça desconsiderou a suspeita de que os jovens usavam drogas.

— Eu nem sei explicar o que a gente sentiu. Era um sonho nosso. Acharam que a gente era ruim pra criança, então fizemos o que eles pediram. Mas olha o que aconteceu — desabafa a mãe.

Agora, o último parecer judicial indica que a criança deve voltar para os pais em até 30 dias — a assistência social do município pedirá mais 30 para a adaptação ser gradativa. Neste período, o casal passará por acompanhamento e deverá comprovar que o bebê crescerá num lar adequado. Caso contrário, aí sim Pedro corre o risco de entrar para a fila de adoção — desta vez, com os trâmites corretos. 

Para entender a decisão que afastou a criança dos pais é preciso conhecer o contexto: a história começou em uma vila de São Francisco de Paula ainda no ano passado, com o casal desempregado e em condições financeiras difíceis. Como buscaram atendimento na rede pública, marido e mulher passaram a ser acompanhados pela assistência social e pelo Conselho Tutelar. Numa dessas avaliações, levantaram a desconfiança dos técnicos, que os considerou imaturos, além da questão do suposto uso de drogas: a mãe admitiu, por exemplo, que não sabia ainda trocar fraldas.

A indicação mais forte para que a criança saísse do berço familiar foi do próprio Conselho, que emitiu parecer indicando que o bebê estava magro e mal cuidado pelos pais. Ao entregar a criança para a assistência social de São Francisco de Paula, poucos dias após o parto, os pais sabiam que travariam uma batalha para reavê-la.

O caso complicou com o envolvimento de uma família acolhedora, indicada pela Justiça para cuidar da criança enquanto a situação do casal era avaliada. O bebê saiu do abrigo e foi morar numa moradia com muito mais conforto e recursos. Seis meses depois, esses acolhedores entregaram o bebê para uma outra família. Detalhe: diferentemente dos pais do bebê, essas duas famílias têm influência e dinheiro na cidade. A disputa em torno de Pedro só acirrou.

A briga pela guarda gerou boletins de ocorrência, investigações e conflito entre os envolvidos. Provocou comoção até entre moradores de São Francisco de Paula, cidade com 21 mil habitantes. Nas ruas, há quem defenda que a criança deveria permanecer no lar mais confortável das famílias ricas, e os que julgam que o melhor é o retorno do bebê ao lar de origem. Até uma policial civil, supostamente próxima da mãe acolhedora, está sob investigação (leia mais abaixo).

Na semana passada, a Justiça ordenou que o bebê voltasse ao abrigo e passasse por um processo de adaptação ao lado dos pais verdadeiros. O equívoco pode estar perto de ser desfeito, mas o estrago levará tempo para ser reparado.
Más condições do abrigo facilitaram retirada da criança
Todo o processo jurídico envolvendo o pequeno Pedro foi tratado no juizado de Canela, já que o titular do Fórum de São Francisco de Paula, juiz Carlos Eduardo Lima Pinto, se julgou impedido de analisar o caso por ser próximo da família acolhedora. A ida de Pedro para a moradia de um primeiro casal foi regulamentada pelo programa Família Acolhedora, que prevê o encaminhamento para lares substitutos de crianças e adolescentes afastados temporariamente de suas famílias. É uma forma de evitar que os pequenos fiquem num abrigo municipal, onde os cuidados são realizados por equipes diferentes, o que pode ser traumático. A família que acolhe é voluntária e não pode ter parentesco.

Ainda que o programa Família Acolhedora não esteja em funcionamento na Serra Gaúcha, a brecha para que o primeiro casal pudesse levar a criança para casa ocorreu em virtude das condições precárias do abrigo público na metade do ano passado, época em que Pedro nasceu. Pelas más condições e superlotação, o espaço não poderia receber novas crianças. Mesmo assim, o bebê ficou sete dias por lá, antes de ser levado.

A saída dele para uma família acolhedora contrariou o Ministério Público (MP), que preferiu não se manifestar sobre o caso ao Pioneiro alegando "segredo de Justiça". Mas o juiz Vancarlo Anacleto, de Canela, enquadrou Pedro no programa com base em relatórios da assistência social e do Conselho Tutelar. 
No entanto, surgiram problemas com a família acolhedora, que revoltou-se contra o serviço social. Segundo o secretário do Trabalho, Habitação e Assistência Social de São Francisco de Paula, Arquimedes da Silva Aguiar, a mulher não permitia a visita dos pais biológicos, o que é um direito em casos assim. O secretário e a equipe da assistência social chegaram a registrar boletim de ocorrência por difamação contra a família acolhedora. 

Não bastasse o conflito entre a família biológica e a acolhedora, uma terceira família entrou na batalha judicial para obter a guarda do bebê. Dos nove meses que ele ficou sob a guarda da família acolhedora, três foram no convívio diário com um casal amigo desta família. Por serem próximas, as duas mulheres consentiam que a criança pernoitasse lá e, aos poucos, Pedro mudou-se de vez para a moradia dessa segunda família. Sem filhos e com o sonho de ter uma criança, esse terceiro casal ingressou com pedido de guarda de Pedro. Mobiliou um quartinho, comprou roupas e passou a tratá-lo como filho. Na fila de adoção há bastante tempo, a mulher achou que fosse a oportunidade ideal e preferiu oficializá-la com o juiz, que arquivou o processo pelo fato do bebê ainda ter pais que o querem.

— Como eu sabia que a situação era complicada, logo pedi a guarda dele pro juiz. Mas foi muito dolorido. Hoje preferimos não falar mais sobre isso. Vamos esperar na fila de adoção, para ver se algum dia tenho a graça de ter um filho — lamenta a mulher que pediu a guarda na Justiça.

O entendimento entre as duas mulheres, até então amigas, complicou. A mãe da Família Acolhedora diz que a amiga se precipitou e sabia que criança não estava destituída do poder familiar e, portanto, não caberia adoção.

— Isso aconteceu porque ela era minha amiga e convivia muito na nossa casa. Ela estava muito desesperada, e às vezes ele (Pedro) dormia na casa dela, assim como dormia na casa da "dinda" dele — argumenta a mãe acolhedora, que não confirma que o bebê morou na casa da amiga. 
'Não cabe a nós nos pautarmos pela questão emocional'
O destino de Pedro, agora, está nas mãos dos pais biológicos. Dentro de poucos dias, ele irá para a casa deles. Um quartinho com berço, fraldas e poucos brinquedos (todos doados pela comunidade) está pronto. Se o Conselho Tutelar e o Ministério Público avaliarem que o casal tem condições de criá-lo, deve permanecer lá. Se não tiver condições, Pedro pode ser encaminhado para adoção ou para o reingresso em um abrigo.

— A história teve uma repercussão muito grande na cidade pelos relatos que recebemos, tem muita gente envolvida e que tomou lado na situação. Entendemos que a família acolhedora criou vínculos, ficou muito tempo com este bebê. Mas não cabe a nós nos pautarmos pela questão emocional — afirma o juiz de Canela, Vancarlo Anacleto.

Segundo o secretário do Trabalho, Habitação e Assistência Social de São Francisco de Paula, Arquimedes da Silva Aguiar, o abrigo público passou por reformas após indicação do MP, e hoje acolhe 13 crianças, incluindo Pedro. A capacidade máxima é de 20 crianças. A assistência social do município acompanha o desenrolar da história de perto. 

Agora, a equipe presta suporte no processo de adaptação dos pais biológicos.
— Nós não podemos interferir numa decisão da justiça — resume o secretário.
— O processo de reaproximação com os pais biológicos precisa ser gradual. Ele ficará lá um dia, um fim de semana, uma semana, até morar de vez com eles. Mas os encontros (entre pais e filho) têm sido muito emocionantes — classifica a assistente social Márcia Paiva.
'Achávamos que eles eram ruins'
Os pais de Pedro estavam desesperançosos. Isso porque a vida simples que levam numa moradia modesta cedida por familiares do pai, sem saneamento e com luz improvisada, dariam pouca chance de criar um filho "com padrão de doutor". Mas acreditavam que um filho, isso sim, poderiam ter.  O temor de perder a criança, reforçada pela perda temporária da guarda paterna e com o envolvimento de duas famílias diferentes, passou a ser amenizada pela confiança que passaram a ter no trabalho do Conselho Tutelar. 

— Nós achávamos que eles (o Conselho Tutelar) eram ruins, mas no fim, vimos que eles "nos dão uma mão" importante sabe? — diz o pai biológico.
Se de um lado estavam os jovens pais que precisavam se conter em ver o filho somente pela tela do celular, com fotos que vez em quando alguém mostrava, do outro estava uma família estruturada, com posses, já com filhos e sonhando com a chegada de mais um. Segundo a Justiça, Pedro foi muito bem cuidado por lá e ganhou até padrinhos.

Mas quando foram obrigados a devolvê-lo, os acolhedores passaram a ter um comportamento "inadequado"e "possessivo", segundo o juiz de Canela, Vancarlo Anacleto. Por isso, além da devolução do bebê, os acolhedores agora precisam manter distância da criança. Caso desrespeitem a ordem, pagarão multa e podem ser processados. Além disso, durante os nove meses em que ficou na casa dos pais provisórios, a criança morou com outra família, amiga dos pais que acolheram.

— Mas agora, o que vemos de fato, é só uma família pobre que não conseguiu ficar com a criança. Se eles vão ter condições ou não de criá-la, isto vai ser acompanhado. Mas pelo simples fato de ser pobre, não é justificativa — acredita o juiz.
O que diz a família acolhedora:
Em entrevista ao Pioneiro, a mãe da família acolhedora diz que está vivendo "uma guerra judicial". Ela diz que o Conselho Tutelar sabia que os pais não têm estrutura e estão mentindo para o juiz ao afirmarem que o lugar onde mora o casal é adequado para uma criança. A mulher diz que sabia que a ida da criança para sua casa seria por pouco tempo:
— Como o juiz não leu o processo e não regularizou as visitas da mãe biológica, a coisa se prolongou por nove meses. E com isso, passamos a pensar em adotar ele — afirma.
A família afirma que já desistiu do processo de adoção porque se tornou "algo pessoal", e que só deseja que a vida da criança seja preservada.
Reproduzido por: Lucas H.

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