quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Filhos do sistema (Reprodução)

13/12/2017

Elas ficam, muitas vezes, até completar a maior idade. Os 18 anos chegam mais rápido do que uma nova família. Enquanto aguardam para ser adotadas, 1.081 crianças e adolescentes moram em 95 abrigos e casas lares na cidade de Porto Alegre. Só no Rio Grande do Sul, são 5.408 casais habilitados para 609 crianças prontas para ser adotadas. Mas por que, ainda com a discrepância desses números, o problema de adoção no estado não é resolvido?

O primeiro motivo é a exigência dos futuros pais em relação ao perfil dos futuros filhos. A maioria busca crianças de até três anos e saudáveis. Raça, sexo e questões de saúde também são fatores que determinam a seleção.

No RS, 5.408 casais estão habilitados para adotar.

3.129 querem crianças de zero a três anos.

1870 aceitam filhos de quatro a seis anos.

E apenas 409 querem adotar uma criança com mais de sete anos de idade, segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA).

Mas nem todas as adoções passam pelo CNA. Isso acontece quando fica-se sabendo por outros meios que não pelo Estado, sobre mães e pais que renunciam ao dever e ao direito de cuidarem de seus filhos. Em 2015, no Rio Grande do Sul, quase 900 crianças foram adotadas fora do cadastro. Esse dado é significante e mostra que existem outras maneiras para tornar esse processo mais rápido, segundo as informações do juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude Marcelo Mairon.

RESTRIÇÃO DE PERFIL: O MAIOR PROBLEMA
O tempo para os trâmites processuais impacta ainda mais nos casos de pais que escolhem crianças de até três anos. A Promotora de Justiça da Infância e da Juventude Cinara Dutra ressalta que “às vezes, os bebês ingressaram pequeninhos, mas a média é de dois anos só para tramitar a ação de Destituição do Poder Familiar (quando a família biológica perde oficialmente o direito sobre a criança e, assim, ela pode ser adotada). A melhor hipótese é no caso da família abrir mão do poder familiar. Se precisar de uma ação de destituição, mesmo que seja iniciada enquanto o bebê está na maternidade, o prazo é de um ano e oito meses”.

MUITA DEMANDA, POUCA GENTE
Além das restrições dos perfis desejados, a falta de efetivo cartorário e de equipe técnica no estado é o segundo principal agravante na demora do processo de adoção. “Todos os processos que tramitam no Segundo Juizado da Infância e Juventude dependem do parecer de um assistente social e de um psicólogo”, explica a promotora Cinara Dutra. “Precisaríamos de mais técnicos atendendo, e os cartórios precisam ter suficientes profissionais competentes para dar conta do trabalho. Porque a equipe de juiz, promotor e defensor público está bem, pelo menos aqui em Porto Alegre. O problema é de estruturação”, fala. Quem concorda com o problema e afirma é o juiz Mairon: “trabalhamos com recurso humano menor do que o desejado”. A assistente social Nadia Sato complementa: “Com a nova formatação da Central de Atendimento Psicossocial Multidisciplinar (CAPM), estamos trabalhando em cinco assistentes sociais e três psicólogos no Segundo Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. Este número é mínimo, pois há pouco tempo trabalhávamos em 13 assistentes sociais. Nas comarcas, normalmente é um assistente social e, em poucas comarcas, tem uma psicóloga. Mas tem comarcas que não tem nem assistente social, nem psicóloga”.
Das 609 crianças disponíveis para adoção no Estado, 209 estão em Porto Alegre que têm os dados cruzados com os cerca de 40.000 pretendentes habilitados no Brasil inteiro, pois o cadastro é nacional. A preferência é para os pretendentes mais próximos, da mesma cidade ou estado. Se não houver, é feito o cruzamento com os dados de possíveis famílias do restante do país. Os profissionais precisam abastecer os dados do CNA com frequência e agilidade e mantê-lo atualizado, além de ter persistência nessa busca para esgotar todas as possibilidades.
Cada comarca define qual setor é responsável pela atualização do cadastro. Quando uma criança é cadastrada como apta para adoção, o CNA cruza os dados dela com os dos pais habilitados para tal perfil. Acontece de um pai já ter adotado; ter perdido o interesse; ter mudado os números de contato; e, ainda assim, estar disponível no cadastro. A não atualização é um entrave a mais no caminho da adoção.
Mairon contextualiza: “A Corregedoria Nacional está trabalhando no aprimoramento desse cadastro, pois têm muitas ferramentas que podem ser implantadas para agregar. Essa atualização também servirá para ampliar, atualizar e criar novas ferramentas”.

E QUANDO A FAMÍLIA RENUNCIA?
A renúncia ao poder familiar é quando a família tem o filho e entende que não tem condições de ficar com ele. A assistente social e o psicólogo conversam, pois é necessário fazer uma grande avaliação. Se a mãe e o pai estão convictos da sua decisão, mesmo depois de todas as orientações, eles são levados até o Juizado da Infância e Juventude. Normalmente, quem toma essa decisão é a mãe, pois está sozinha e não tem o apoio do pai, que muitas vezes nem é localizado.
Perante o promotor de justiça e ao juiz, com um defensor ao lado nos casos que não é possível ter um advogado, a mãe afirma que não tem interesse em ficar com a criança. Questiona-se sobre a família, avó, tios, pois se alguém tiver interesse, essa pessoa fica com a criança. Caso contrário, se faz o encaminhamento para a família substituta. A mãe tem o prazo de dez dias para voltar atrás e decidir ficar com o filho. É feito um estudo com a mãe, pois se ela renunciou e não tem condições, o Ministério Público faz a Destituição do Poder Familiar, e é feito de tudo para que a criança seja inserida o quanto antes em uma família substituta.

COMO É FEITO O ACOLHIMENTO DA CRIANÇA/ADOLESCENTE?
acolhimento institucional é feito pelo Ministério Público para os casos em que a criança está em uma situação de vulnerabilidade, seja por sofrer abuso psicológico, sexual, abandono ou etc. O juiz responsável aprecia e define se defere ou não o acolhimento. Inserido no acolhimento institucional, os técnicos da casa têm o prazo de 30 dias para fazer o Plano Individual de Atendimento (PIA). Nesse plano são verificados os encaminhamentos necessários para que a criança retorne o quanto antes para casa. Ou, se for o caso, conclui-se que ela não pode voltar para a família nuclear e, então, é encaminhada para a família extensa (parentes, tios, avôs, primos, padrasto, pessoas com afinidade).
Cinara Dutra afirma: “Se os técnicos entendem que há a possibilidade de a criança voltar para a família no curto ou médio prazo, é feito o acompanhamento buscando esse retorno. Se não há uma viabilidade para ela voltar, pois os pais são falecidos, não há família extensa, ou a família extensa é envolvida com tráfico, por exemplo, então o Ministério Público recebe o processo e abre a ação de Destituição de Poder Familiar. Essa ação deveria tramitar em 120 dias, mas em regra tramita por muito mais tempo, em uma média de dois anos”. Nos casos de acolhidos com algum tipo de deficiência, é avaliada a gravidade e, se for constatado que não tem condições de ter uma vida independente, o abrigo mantém o acolhido mesmo depois dos seus 18 anos completos. Porém, quando o adolescente se aproxima da maior idade, os abrigos buscam matricular o acolhido em cursos técnicos, profissionalizantes para capacitá-lo. O abrigo também busca vagas de emprego para inserir o jovem no mercado de trabalho.
Também existe o acolhimento emergencial. O Conselho Tutelar, em uma situação de extrema gravidade, quando não é possível aguardar o decreto judicial, faz o acolhimento emergencial. Informa-se para o judiciário no prazo de 24 horas, agenda-se uma audiência com a presença do Promotor de Justiça, dos técnicos da casa de acolhimento e do Conselho Tutelar. Aí é decidido se é necessário fazer o acolhimento emergencial ou se uma medida de proteção/prevenção é o suficiente. Em alguns casos, o acolhimento é feito, pois era urgente naquele momento, mas assim que a situação é resolvida, a criança/o adolescente pode voltar para casa.
Apesar dos dados, histórias de amor e esperança:

A PARAÚCHA DORA

O destino da Dora cruzou com o do publicitário Caco Arnt, sua esposa Cristina Arnt e da sua filha biológica Lara no ano de 2009. A família estava em viagem para Porto de Galinhas, onde ficaram amigos de um casal. Entre conversas, chegaram ao assunto sobre filhos e adoção. “Sempre pensamos em adotar uma segunda filha a partir do momento em que a Lara pudesse ter um mínimo entendimento sobre ganhar uma irmã adotiva, acolher uma criança que não ‘veio da barriga’”, relembra. O casal iniciou o processo de adoção em 2008, e em abril de 2009 se tornaram habilitados e entraram na fila.

O novo casal de amigos, ele advogado e ela psicóloga, conhecia muito bem a realidade do interior da Paraíba: frequentes casos de adoção causados pela grande quantidade de filhos de pessoas em situação de miséria. O lugar também não tem creches, abrigos e muito menos casas de acolhimento. Ficou acordado que se ficassem sabendo de alguma criança disponível, informariam Caco e Cris.
Em agosto de 2009, veio a ligação. Era o casal para dizer que havia o caso de uma família em Jacaraú, cidade a 96 km da Capital, sem condições de criar um bebê de nove meses. “Claro que ficamos em dúvida e, para ver a legalidade da situação, pedimos informações sobre como se daria o caso e quanto teríamos que pagar pelo processo, e ela nem chegou a ser cadastrada no Cadastro Nacional de Adoção. Nosso amigo advogado enviou um e-mail dizendo que não cobraria nada, apenas a garantia de educação, amor e uma família para uma criança sem futuro, e manifestou sua alegria em dar uma chance de vida melhor a um bebê da sua região.”

No dia sete de dezembro de 2009, ocorreu a audiência que decidia o destino da pequena Dora. A adoção foi consensual, e Caco destaca que a atitude da mãe biológica foi por puro amor, pois permitiu a adoção em troca de um futuro melhor para a criança. Caco não se esquece das palavras da mulher depois de ouvir o juiz tentar reverter sua decisão: “Mas doutor, eu mal consigo ter o que comer, como vou cuidar dela?”.

Três dias depois da audiência eles voltam para Porto Alegre com a Dora, chamada carinhosamente de Paraúcha. A guarda definitiva demorou cerca de um ano para ser expedida. Com esta demora, Caco identificou as deficiências dos órgãos responsáveis por organizar e encaminhar os casos de adoção e aponta a falta de estrutura e pessoal: “Um assistente social visitaria nossa casa algumas vezes para avaliar a situação da nossa filha e da nossa família. Ocorre que, como nunca nos contatavam para tal, resolvemos ligar e descobrimos que não tinham efetivo para se deslocar até a nossa casa. Isto em Porto Alegre. Imagine em cidades menores, e em especial na região onde a Dora nasceu, quais seriam as condições? Lamentável. Por isto, temos uma quantidade absurda de famílias querendo adotar, crianças crescendo em abrigos e tendo suas infâncias praticamente roubadas”.

Hoje, a Dora está com oito anos. Apesar de não ter contato com a família biológica, Caco explica que “ela sabe de toda a sua história e a trata com naturalidade”. Ele afirma: “Temos um plano futuro. Se tivermos condições, faremos uma adoção tardia de crianças que passam dos 6 ou 7 anos, que tem mais dificuldade de serem adotadas”.

OS GÊMEOS HELOISA E TIAGO

De São Paulo, vem a história de um perfil aberto: sem restrição de cor, a família aceitava grupos de irmãos e crianças mais velhas. A vontade de adotar sempre esteve presente. O desejo foi colocado em prática em fevereiro de 2015, quando Deborah Lougue deu encaminhamento ao seu processo de habilitação e, em abril, ela já tinha um casal de gêmeos de seis anos como filhos. Três anos depois, o processo de adoção ainda está em fase final e mais demorado que o comum, aguardando a liberação das certidões de nascimento, pois as crianças têm o desejo de mudar de nome. Como essa mudança não é permitida, a mãe sugeriu que elas escolhessem um nome composto e, assim, poderão usá-lo. Neste texto, vamos chamá-las de Heloisa e Tiago, os nomes escolhidos pelas crianças.

Hoje com nove anos, o casal de gêmeos ganhou uma nova família aos seis. Eles moravam em Pombal, cidade próxima a Ribeirão Preto, no norte do estado de São Paulo, e hoje vivem em São Paulo, Capital. A mãe conta que os filhos são saudáveis, mas não ficaram imunes às sequelas do período em que estavam vulneráveis. Mesmo assim, houve resistência da família biológica em deixá-los para adoção.

“Quando fomos, pegamos os gêmeos apenas para passar o dia, mas eles acabaram nem voltando para o abrigo. Ou seja, não foram ‘preparados’ para a adoção”.

Atualmente, a convivência é tranquila. “Acho que está resolvido. Eles contam para os amigos que são adotados sem nenhum problema. No primeiro colégio que estudaram, ainda em Campinas, era uma novidade para a escola e era muito comentado. Por isso, pediram para mudar de escola. Depois, eles mesmos começaram a falar”, conta a mãe.

Heloisa e Tiago aceitaram a nova família rapidamente, mas todos fizeram terapia. No começo, as crianças não entendiam porque tinham perdido a outra família, mas hoje Deborah conta a verdade sobre a mãe biológica não estar com eles.
Ela afirma: “Heloisa e Tiago chegaram, e eu e meu ex-marido já sabíamos que queríamos ficar com eles. Eles têm um irmão um ano mais velho, que não quis ficar conosco porque queria cuidar da mãe, que estava doente. Os gêmeos não confiavam em nenhum adulto, foi um pouco trabalhoso conquistar a confiança deles. Eles faziam testes para tentar “nos pegar” em alguma mentira”. O irmão não tem mais contato com o casal de gêmeos, pois mora com um tio e mantém relação com os pais biológicos, que não tentam mais contato.

OS SOBRINHOS

A supervisora de marketing Andreia F. tentou engravidar algumas vezes e descobriu que não poderia ter filhos. Então se inscreveu no Cadastro Nacional de Adoção. O seu perfil era bastante restrito: preferência por crianças brancas, de até seis meses e saudáveis. No entanto, o destino acabou a surpreendendo.

Sua sobrinha não tinha condições de cuidar da filha de dois anos e meio e ofereceu a guarda para Andreia. “Na adoção você não escolhe, você é escolhido. Não tenho vergonha de falar sobre o meu perfil no Cadastro Nacional. O destino me deu uma menina vinda de um familiar. E foi assim que descobri o amor. Hoje, se fosse adotar, com certeza meu perfil seria mais aberto. O amor não depende de cor, idade e nem problemas de saúde”, conta.

Dois anos após adotar a menina, Andreia adotou também o irmão, filho mais velho da sobrinha, que na época tinha 11 anos. Por enquanto, ela conquistou a adoção definitiva apenas da menina, depois de um processo de dois anos, e está em processo para finalizar a adoção do segundo filho.

O juiz Marcelo Mairon fala sobre adoção entre familiares: “Avô/avó e irmãos/irmãs não podem adotar. Mas um tio/tia pode adotar o sobrinho(a), basta ser maior de idade e ter uma diferença de 16 anos com o adotante”.

Para reduzir os números das crianças que esperam por um novo lar, o primeiro passo é conscientizar a população sobre a importância de definir um perfil mais aberto, com poucas restrições de idade, sexo e cor. O segundo é melhorar a estrutura cartorária do estado e capacitar pessoas para alimentar o Cadastro Nacional de Adoção. Sobre a burocracia, espera-se que o processo seja mais ágil, priorizando o bem-estar e o futuro das crianças e adolescentes.

Se você deseja adotar uma criança, saiba mais sobre o processo nesse link.
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Esta é uma matéria especial, produzida pelos alunos de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre para a cadeira de jornalismo investigativo, com supervisão da professora Luciana Kraemer. A reportagem recebeu o segundo lugar no prêmio Jornalismo do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
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Original disponível em: http://diariodeviamao.com.br/mobile//noticias/cotidiano/1632_filhos-do-sistema

Reproduzido por: Lucas H.

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